A educadora Maria Cecília Cury, diretora da escola Crianças & Cia., onde estudava o menino João Hélio, fala sobre como foi lidar com o trauma causado pela tragédia em sua comunidade escolar. João Hélio
era nosso aluno e as aulas tinham acabado de começar. Ele estava no primeiro
ano do Ensino Fundamental.
Na manhã do dia da tragédia, um membro da família nos
telefonou avisando do ocorrido. Nesse momento, nós já percebemos
que o alcance do fato seria muito grande. Essa fatalidade iria entrar na casa
das pessoas à noite.
Em nossa escola, trabalhamos
com crianças da Educação Infantil à 4.ª série
do Ensino Fundamental. Mesmo diante da notícia, que abalou muito a todos
nós, precisávamos manter a tranqüilidade para poder conduzir
o dia. Então, pela manhã, mandamos uma circular informando os
pais sobre o acidente e orientando as famílias da seguinte forma: caso
a criança ouvisse a notícia e a comentasse, os pais deveriam explicar
o que houve à luz da sua própria filosofia de vida ou religião,
sem carregar nas cores e nos detalhes do crime, ou seja, sem se referir a realidades
que a criança ainda não tem condições de suportar
e deveriam responder ao que lhes fosse perguntado, somente ao que lhes fosse
perguntado.
Sabíamos que suspender as aulas não seria o melhor caminho. Reunimos
nossos professores e os orientamos da seguinte forma: se uma criança
mencionasse o assunto, que ele fosse abordado pelo(a) professor(a), isto é,
não fosse ocultado, e que os sentimentos que aflorassem também
não fossem negados ou contidos, ou seja, se a criança chorasse,
o(a) professor(a) deveria deixá-la chorar, e, em seguida, explicar que
é natural ficarmos muito tristes com um fato desses, mas que manifestações
histéricas (como gritos de revolta e frases fortes) deveriam ser evitadas,
pois essas atitudes não seriam benéficas às crianças
pequenas.
Fomos ao velório e notamos que estavam presentes toda a imprensa e o
alto comando da polícia. Nesse instante, tivemos a confirmação
de que o fato tinha mesmo ultrapassado a dimensão de uma tragédia
familiar. Recebemos cartas e e-mails do Peru, dos Estados Unidos e da Europa
expressando solidariedade.
Esse período foi bastante pesado, pois a imprensa veio até a
escola em busca de fotos, ficha e do último trabalho de João Hélio.
Acho que nossos passos foram iluminados e, assim, pudemos proceder da melhor
maneira possível. Os jornalistas puderam entrar na escola até
certo ponto e não permiti o acesso deles pelo portão onde ficavam
as crianças. A minha preocupação foi a de sempre preservar
a criança, não permitindo atitudes invasivas e exploratórias
e sendo discreta em respeito a João Hélio e sua família.
Alguns jornalistas insistiam, mas eu explicava o porquê de minha atitude:
que não poderíamos mostrar nada a eles, pois tudo pertencia à
família do menino, portanto, sigiloso. Eles foram muito respeitosos e
éticos, não tenho queixa alguma. Acho que a situação
transcorreu desse modo porque as pessoas estavam realmente muito comovidas.
Eu vi repórteres, policiais, pessoas mais velhas chorando muito no enterro.
Foi algo que traumatizou bastante.
Foi divulgado um desenho de João Hélio no jornal O Globo, pois,
coincidentemente, do lado de fora do portão por onde as crianças
entram na escola, havia um mural da turma dele com o primeiro trabalhinho de
volta às aulas das crianças. João fez o seu e ele estava
exposto ali.
No dia seguinte, nas turmas da Educação Infantil, ninguém
tocou no assunto. Na turminha dele, as crianças o comentaram e, por meio
desses comentários, percebemos que felizmente as famílias procederam
como as instruímos. Os discursos das crianças afirmavam que ele
havia “virado um anjinho”, “uma estrelinha” ou “estava
com o Papai do Céu”.
As crianças das séries mais adiantadas disseram que não
queriam ouvir falar do assunto, pois o achavam muito triste. Mas nossos(as)
professores(as) conseguiram explicar aos alunos que o que aconteceu (tendo o
cuidado de não dar a eles elementos que não pudessem suportar),
que era algo muito doloroso, sofrido e que todos nós poderíamos
chorar e ficarmos tristes.
Não fizemos luto, a não ser no sétimo dia do falecimento
de João Hélio. Docentes e pais realizaram uma passeata silenciosa
até a igreja. Levamos um retrato dele, com autorização
da família. Algumas mães de crianças da 4.ª série
levaram seus filhos, mas não estavam presentes muitas crianças,
em torno de meia dúzia. Mesmo assim, após a passeata, fizemos
uma reunião de aconselhamento aos pais, explicando que não se
leva criança a ocasiões desse tipo. Pode ser pesado demais! Alguns
aspectos da vida ainda são incompreensíveis para ela.
Esses cuidados devem ser tomados não apenas com a temática da
morte. Ao abordar qualquer tema, é preciso tratá-lo segundo o
nível de compreensão da criança. Deve-se explicar o que
a criança pergunta, mas não é preciso fazer um tratado
sobre todos os aspectos envolvidos na questão.
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