Sem título A titulação — o reconhecimento
oficial de propriedade das terras quilombolas — é condição
para que o governo ofereça obras e serviços básicos, como
saúde e Educação. Veja como funciona esse processo.
Como vimos anteriormente, a questão
quilombola passou a ser levada a sério pela opinião pública
em 1988, mas foi só em 2003 que o governo federal instituiu, por meio
do Decreto 4.887, uma regulamentação minimamente adequada para
o processo de titulação. Antes, era um troca-troca de regras,
e essa confusão afeta até hoje as comunidades que tiveram seus
títulos emitidos até então.
A legislação atual funciona
assim: o primeiro passo é a auto-identificação da comunidade.
Ou seja, a comunidade tem que dizer que é um quilombo, comprovando como
puder. Às vezes, há documentos que atestam a origem (como no caso
em que as terras foram doadas pelos antigos senhores), mas é raro que
isso aconteça. Na maioria das vezes, a identificação é
feita por meio de relatos dos habitantes mais velhos, que guardam as histórias
que lhes foram contadas pelas antigas gerações.
A partir dessa auto-identificação,
os líderes regionais, muitas vezes com a ajuda de organizações
não-governamentais, protocolam o pedido de titulação junto
ao Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária).
Paralelamente, a Fundação Cultural Palmares, mantida pelo Ministério
da Cultura, realiza, com base no registro dos pedidos, uma espécie de
mapeamento das comunidades do País, o que se chama de certificação.
* Essa certificação não tem o mesmo valor que uma titulação,
mas alguns estados a reconhecem na aplicação de políticas
públicas.
A partir daí, o Incra realiza um trabalho
que envolve visitas à comunidade com a participação de
um antropólogo, que deve elaborar um relatório sobre a autenticidade
da auto-identificação. É aí que o negócio
empaca.
De todas as comunidades quilombolas que solicitaram
a titulação depois de 2003, apenas cinco tiveram seus processos
concluídos até agora pelo Incra. Para a coordenadora do Programa
de Comunidades Quilombolas da Comissão Pro-Índio (atenção:
não confunda índio com quilombola!) de São Paulo, Lucia
Andrade, é um número difícil de engolir.
“O Incra, que é o responsável
por essas titulações em nível nacional, nos diz que os
processos demoram porque falta pessoal técnico e também porque
eles têm esbarrado na justiça, por conta de processos contrários
— quando, por exemplo, o proprietário de uma terra contesta a sua
reivindicação pelos quilombolas. Mas como é que falta gente,
se todos os anos o Incra devolve dinheiro destinado a isso sem usar? Além
disso, o CPISP fez uma pesquisa e descobriu a existência de somente dois
processos contrários a titulações quilombolas!”,
diz.
A boa notícia é que a titulação
pode ser feita também pelos governos estaduais, em parceria com o Incra.
É o caso de Piauí e Maranhão, por exemplo, que encaminham
suas próprias titulações, atuando inclusive em processos
de desapropriação quando necessário. Juntos, estes estados
conseguiram titular 18 comunidades após 2003.
Há estados que começaram a lidar
com a questão quilombola há pouco tempo. O Paraná é
um deles e tem uma história impressionante: até 2005, quase nada
se sabia sobre a presença de quilombos na região. A partir de
uma série de discussões levantadas por educadores, o governo do
estado formou um grupo de trabalho integrando 11 secretarias e começou
a fazer um levantamento das comunidades existentes no estado. “Algumas
pessoas achavam que, se tivéssemos 12, seria muito” explica o presidente
do Grupo de Trabalho Clóvis Moura, Glauco Souza Lobo. “Hoje, temos
conhecimento de, pelo menos, 86 comunidades, com cerca de 17 mil pessoas vivendo
nelas”. O Paraná não faz suas próprias titulações,
mas tem encarado as políticas públicas para os quilombos como
prioridade. Muitas comunidades estão recebendo hortas para agricultura
de subsistência, água, saneamento, construção e recuperação
de casas quilombolas. O governo está trabalhando também na definição
de diretrizes curriculares específicas para as escolas quilombolas. Há
ainda um projeto de patrulha comunitária quilombola, com o fim de defender
as comunidades, “com pessoal bem treinado em relação à
cultura dessas comunidades, o que é muito importante”, completa
Glauco.
Fotos:
Grupo de Trabalho Clóvis Moura, Paraná |
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Moradoras de quilombos paranaenses mostram o interior de suas casas. |
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