Conta uma lenda local que os Rios Capibaribe e Beberibe se uniram às
portas do Recife para formar o Oceano Atlântico. Felizmente, isso não
passa de lenda. Caso contrário, o oceano que banha a costa brasileira
não passaria de um imenso esgoto.
De todas as cidades que visitamos até agora, em seis anos de viagens
pela costa do Brasil, sem dúvida, Recife é visualmente a mais
suja em relação à água. Vista
do alto, a capital pernambucana é uma mistura de água
e terra, com diferentes rios e canais que cortam o centro e bairros da cidade.
Como dizem os moradores do local, é uma "Veneza
tropical". No entanto, por causa do descaso em relação
ao saneamento básico, a definição da secretária
estadual de Recursos Hídricos e Meio Ambiente, Alexandrina Sobreira de
Moura, está bem mais próxima da realidade: “Recife é
a Veneza contaminada”.
Não é para menos. Dos 3,38 milhões de metros cúbicos
de esgoto produzidos mensalmente pelos quase 1,5 milhão de habitantes,
apenas 33% são coletados. Desses, só 70% passam por estações
de tratamento; o restante é jogado nos rios ou em fossas
in natura. E, para complicar, o lençol freático da cidade é
muito raso, e duas horas de chuva são suficientes para que as fossas
transbordem. “Para evitar isso, as construtoras, quando fazem os prédios,
colocam uma espécie de ‘ladrão’, que liga as fossas
às galerias de águas pluviais (por onde escoa a água das
chuvas). Dessa forma, o esgoto vai direto para os rios. Mas não pense
que isso é novidade. Todo mundo sabe que é assim, só que,
como não há rede de esgoto, não há alternativa e
também não existe uma fiscalização rígida
em relação a esse problema”, disse-me um proprietário
de construtora.
Recife talvez seja a única cidade que conhecemos em que o esgoto a
céu aberto é totalmente democrático. Ele não atinge
apenas favelas e periferias, como acontece em outras cidades brasileiras, mas
está espalhado por toda a capital pernambucana, desde a lagoa que abriga
as lanchas e veleiros do Cabanga Iate Clube — que reúne as famílias
mais abastadas da cidade — até a água sob as palafitas de
Brasília Teimosa, uma favela da cidade. Na fronteira do principal shopping
da capital, os canos
de PVC denunciam o despejo de esgoto diretamente do vaso sanitário
das casas e bares da favela vizinha em um pequeno córrego.
Basta andar alguns quarteirões para sentir as conseqüências
do descaso. Nas proximidades do canal de Setúbal — que recebe dejetos
de várias redes de esgoto ligadas clandestinamente à rede pluvial
—, o odor é quase insuportável, e a cena também não
é nada agradável: é tanto esgoto que, no verão ou
em dias mais quentes das outras estações do ano, os motoristas
são obrigados a fechar as janelas do carro. O cheiro é tão
forte que, muitas vezes, provoca náuseas em turistas, como nós,
não acostumados a esse tipo de ar fétido.
Para o diretor técnico da Companhia
Pernambucana de Saneamento (Compesa), Álvaro José
Menezes da Costa, esses problemas tendem a piorar nos próximos anos devido
ao crescimento demográfico na capital e à falta de investimentos
no setor.
Estudos feitos pela empresa e pelo governo do Estado mostram que são
necessários investimentos da ordem de R$ 800 milhões para que
a rede de esgotos chegue a 80% da população. “Nenhuma empresa
de saneamento tem condições de realizar obras desse porte. E o
problema não é só a falta de recursos. No passado, já
tivemos dinheiro e não adiantou muito. É preciso ter dinheiro,
aplicá-lo bem e desenvolver um processo de gestão continuada,
pois, depois de investir, você tem de operar o sistema e fazer manutenção
preventiva, senão, em seis anos, ele entra na obsolescência que
existe hoje: estações que não funcionam, equipamentos que
não se consegue substituir, e, de repente, instala-se um caos”,
diz o diretor. Segundo ele, o último grande investimento no setor foi
feito em 1997, na época do governo de Miguel Arraes, por meio do Programa
de Ação Social e Planejamento, com recursos do Banco Interamericano.
Em 1998, a obra foi interrompida por falta de investimentos e só foi
concluída em 2002 graças ao programa Águas de Pernambuco.
“O governo investiu R$ 15 milhões provenientes dos recursos que
obteve com a venda da Companhia de Eletricidade de Pernambuco (Celpe)”,
relata.
Para dar uma idéia melhor de como o sistema está obsoleto, uma
das três estações elevatórias de tratamento é
do início do século passado, e determinadas partes da rede de
escoamento são bem mais antigas.
“Esta ilha do Recife (o centro) é toda saneada, mas algumas manilhas
são da época da invasão holandesa. Sem dúvida, a
solução para o problema passa pela necessidade de mais recursos
e investimentos no setor, mas também por uma capacitação
maior do fornecedor do serviço — no caso, nós da Compesa
— e, principalmente, por uma questão cultural da população.
As pessoas têm de entender que precisam cobrar mais e manter essa cobrança.
Se não fizerem isso, não vai haver uma solução permanente;
a empresa vai continuar atendendo pontualmente os problemas que aparecem: assim
que resolve um, vira para o lado e vai resolver o próximo, sem pensar
na necessidade de uma gestão mais complexa”, explica o diretor.