Não se trata apenas de falta de água. O buraco do semi-árido
brasileiro “é um pouco mais embaixo”.
Segundo o próprio governador do estado da Paraíba, Cássio
Cunha Lima, mentor do projeto Sede Zero e um dos políticos mais engajados
na luta pelo gerenciamento dos recursos hídricos no Nordeste brasileiro,
“Vivemos no semi-árido mais chuvoso da terra”. Como se isso
não bastasse, ainda há um riquíssimo lençol freático,
capaz de abastecer boa parte do Nordeste.
Não foi à toa que as palavras gestão e responsabilidade
estavam entre as mais usadas durante o Fórum de Campina Grande. Motivos
para a preocupação com esses dois fatores não faltam; afinal,
ao longo da história, eles foram decisivos para que a indústria
da seca se mantivesse forte.
Pior do que a falta de recursos hídricos e financeiros é a ausência
de uma política nacional e regional para que se possa pensar sobre o problema.
Em um de seus discursos recentes, o próprio presidente da República,
Luiz Inácio Lula da Silva, destacou que, quando os nordestinos reclamam
que os investimentos para o Sul e Sudeste são maiores, eles esquecem de
levar em consideração que muito dinheiro já foi gasto na
Região Nordeste para se atacar o problema da seca, mas que, infelizmente,
ele acabou sendo mal empregado pelas autoridades locais.
Ao circular pelos corredores do Fórum de Campina Grande, conversando
com técnicos e pesquisadores que atuam no campo em diferentes projetos,
em contato mais direto com a comunidade, é possível ter uma noção
do que o presidente falou. Nos bastidores do fórum, as histórias
sobre a água se multiplicam. Por vezes, chegam a ser engraçadas.
Outras, porém, como afirmou o secretário adjunto dos Recursos
Hídricos da Paraíba, “são caso de polícia”.
O coordenador de projetos de dessalinização da Agência Nacional
da Água, Herbert Cardoso, lembra que, há dois anos, quando estava
ligando um equipamento em uma cidade do interior de Pernambuco, um morador bastante
idoso abordou-o para saber o que ele estava fazendo. Explicação
dada, veio a tréplica: “Ah, moço! Isso não adianta,
não. Foi meu avô quem furou esse poço e a água sempre
foi assim, com gosto”. Pacientemente, Herbert Cardoso explicou novamente
o que iria acontecer, mas não o convenceu. “Se o senhor conseguir
fazer essa água sair daí de baixo da terra sem gosto, eu vou comer
capim”, disse o velhinho.
Passados alguns dias, na data da inauguração, Cardoso lembra que
os moradores da cidade chegaram a fazer fila para experimentar a água dessalinizada.
“O quinto da fila era o velhinho. Quando ele pegou o copo, olhou para mim
ainda desconfiado, mas bebeu. Na mesma hora, os olhos dele se encheram de lágrimas
e ele disse: ‘Eu não pensei que fosse viver para ver isso, não’.
Logo depois, ele olhou para baixo, agachou-se rapidamente, arrancou um punhado
de capim da terra e começou a comê-lo. Eu disse que ele não
precisava fazer aquilo e que, a partir de agora, a água ali seria sempre
assim, sem gosto”, disse o coordenador.
Histórias como essa enchem Herbert Cardoso de orgulho, mas, infelizmente,
não chegam a ser uma unanimidade. Por causa do descaso das autoridades
locais, traduzido em falta de manutenção, “Dos 790 dessalinizadores
instalados no semi-árido do Nordeste entre 1998 e 2000, boa parte já
não funciona mais (tentamos apurar o número exato, mas nem mesmo
os gestores do projeto conhecem a dimensão do problema). Embora muitas
vezes a população chegue a fazer uma capa para que o equipamento
seja bem tratado, há casos como o do prefeito que mandou cimentar o poço
apenas porque quem conseguiu levar o dessalinizador para a cidade foi um deputado
que é inimigo político dele”, diz Herbert Cardoso.
No caso de Campina Grande, não é necessário procurar muito
para observar o que a falta de gestão pode provocar. No centro da cidade,
fica o Açude Velho, que, em vez de ser usado para lazer ou até mesmo
como uma reserva estratégica de água, transformou-se em uma imensa
lagoa de estabilização, que recebe parte do esgoto da cidade por
meio de ligações clandestinas. A cor da água do córrego
que abastece o Açude Velho dá uma idéia da qualidade da água
que está armazenada neste.
Projetos avançados como o reuso (transformação de esgoto
em água com qualidade suficiente para ser usada na irrigação,
na indústria e até mesmo para o consumo humano) por meio da utilização
de reatores de fluxo ascendentes merecem placas e propagandas do governo, recebem
a visita do secretário nacional dos Recursos Hídricos, mas não
conseguem entrar em funcionamento.
Mesmo sendo apontado pelo coordenador da Agência Nacional das Águas
como um projeto de referência para o país, falta verba para que as
turbinas, que já custaram ao governo R$ 600.000,00, comecem a funcionar.
“Esse é mais um dos projetos muito importantes que precisam ser levados
adiante. Além de não ser caro, poderá nos dar parâmetros
como o custo real (fora do laboratório) do tratamento dos esgotos para
o reuso da água pela indústria, agricultura e até mesmo para
fins domésticos”, diz Herbert Cardoso.
Enquanto propostas como essa ficam paradas, à espera de novos investimentos,
o país paga, só de juros anuais, US$ 1,5 milhão por empréstimos
liberados pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) para o combate à
seca, mas que não estão sendo utilizados.
“A carência de recursos hídricos é uma realidade, mas
o grande problema mesmo é a falta de gestão. Historicamente, administramos
muito mal. A Paraíba, por exemplo, tem grandes açudes que foram
construídos para atender a interesses políticos e pontuais, o que
acaba prejudicando o sistema como um todo”, diz o diretor do Centro de Ciências
e Tecnologia da Universidade Federal de Campina Grande, Benedito Aguiar Neto,
47 anos. Como exemplo, o professor destaca o fato de que, atendendo a esses interesses
políticos, foram construídas barragens nos rios que alimentam o
Boqueirão. Como conseqüência, há alguns anos, o principal
açude da região (o Boqueirão) opera com apenas 40% de sua
capacidade. “Como se não bastasse isso, a irrigação
ainda é feita sem obedecer a critério e os rios são contaminados
por agrotóxicos e esgoto”, diz o professor.
Para o secretário adjunto dos Recursos Hídricos da Paraíba
e presidente do fórum, nos dois próximos anos, talvez esse seja
o grande desafio que os moradores da região vão enfrentar para que
possam ter acesso a pelo menos 40 litros de água por dia — o mínimo
necessário para a sobrevivência humana, segundo a Organização
Mundial de Saúde.